Cinzas em Gaza
Grande parte da humanidade assiste todos os dias as cenas dantescas da faixa de Gaza. Cada vez mais, amplia-se o sentimento de que os valores da civilização greco-romana e, também, do cristianismo, nascido ali mesmo nas areias do Oriente Médio, se desfaz numa celebração caótica e apocalíptica de nova ‘tempestade no deserto’.
Não há nada a dizer, apenas lamentar o modo como, num gemido e num soluço, se acelera o processo de asfixia e morte da mais fulgurante das civilizações, a que deu ao mundo pouco mais de dois mil anos de irresistível evolução. Da filosofia e da democracia, à urbanização e ao industrialismo, a civilização ocidental agora definha de forma inexorável.
Quando os bárbaros avançaram –vindos dos desertos do Afeganistão – e derrubaram o império romano, por volta dos séculos 3 e 4 da era cristã – a sociedade romana nada mais tinha dos valores que a estabelecera como o maior ‘império’ da face da Terra. Seus políticos se reuniam em torno de quadrilhas do mais deslavado cinismo e, mesmo no Senado da República, esfaquearam a Júlio César. Rasgaram todos os códigos, queimaram todos os decálogos, subverteram a hierarquia das forças militares e se estabeleceu a anarquia, o que apenas antecipou a grande derrocada de 476, quando Roma foi incendiada e os bárbaros tomaram o poder.
Agora, no tumulto sem fim que se iniciou com os ataques de 11 de setembro de 2001, as forças de idêntico barbarismo avançam por todos os cantos. Invasão do Iraque, guerra no Afeganistão, pandemia em 2020 a 2022, com ameaças de possível reaparecimento a qualquer momento, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e o renascimento da violência e do irracionalismo no Oriente Médio, apenas demonstram que, sim, podemos contemplar o que talvez seja os estertores da outrora tão decantada e exaltada ‘civilização ocidental´.
Os cenários são estarrecedores e iguais, numa mesma exibição de decadência e fanatismo. Sim, vivemos tempos de polarização política, cultural e religiosa. Os personagens de agora são decrépitos, vazios e igualmente incapazes de qualquer ação afirmativa e coerente. Homens inferiores, feitos para a submissão, escreveria o historiador romano Tácito, repetindo o mesmo parecer feito a propósito dos pequenos homens que sepultaram a grandeza de Roma.
A imensa desproporcionalidade da reação de Israel, revela a pequenez de seus generais e o ódio infinito que move as entranhas de um povo aniquilado pelo fel do ressentimento e da fraqueza. Repete-se em Gaza o mesmo aniquilamento que se viu nos campos de concentração da Alemanha de Hitler. Repete-se na Europa – e nos Estados Unidos – a mesma tolerância e cumplicidade com forças demoníacas liberadas pelo ódio racial e religioso. Há 70 anos, Hitler pôde avançar porque quase todos – exceção apenas de Churchill e De Gaulle – pensavam que jamais Hitler ousaria tanto.
Nenhuma civilização desaparece em poucos anos. São necessárias décadas de queda e ruína, até que se perceba que, de fato, os valores perenes que construíram os alicerces de uma nova força civilizatória estão desmoronando. Como agora, como estamos vendo nas últimas décadas. Desde 1989, com a ruína do muro de Berlim e do império soviético? Ou desde 11 de setembro de 2001, no ressurgimento do terrorismo em Nova Iorque? Ou agora mesmo, desde a invasão do Hamas em 7 de outubro? Não faltam datas, e nem consideramos a catástrofe das mudanças do clima, que açoitam povos e cidades em todos os continentes.
Como morrem as civilizações? Morrem lentamente, quase sempre em decorrência da insensatez dos homens, essa espécie tão convencida de que é superior. Até mesmo feita à imagem e semelhança de Deus. Sim, esse é tamanho da nossa arrogância e a maior de todas as blasfêmias. E se Gaza virar cinzas, repetindo Hiroxima e Nagasagui? Os bárbaros voltaram, o Ocidente pode estar terminando. (aternes@terra.com.br)