Devaneios de um caminhante solitário
Jean Jacques Rousseau publicou um pequeno livro contando o que lhe passava pela cabeça enquanto caminhava de lá para cá. Trata-se de um clássico da arte de caminhar, pouco lido, mas bem citado por aí. Tenho um exemplar na biblioteca, adquirido, talvez, na mocidade. Caminhar e pensar, sabemos há milênios, vivem juntos. Um precisa do outro e há teorias que informam que o animal bípede em que nos transformamos gerou o cérebro que desenvolvemos. E assim caminha a humanidade, diz o ditado que é do século 20, mas pode ter sido dito – ainda na forma de grunhido – há muitas dezenas de milênios passados.
As teorias da evolução humana estão cada vez mais interessantes e, talvez, nunca se publicou tantos livros sobre o assunto quanto agora. Antonio Damásio é um dos mais conhecidos dessa fauna de polímatas que se dedicam às especulações e pesquisas sobre o enigma de onde viemos. O cérebro, claro, um dia vai explicar a questão, bem como, e estamos próximos, produziremos a próxima mutação. Os transumanos, como sabemos e tanto se pesquisa. O homem e a máquina, na complexidade maior do que a ousada por deuses e cientistas. No seu exuberante ‘A estranha ordem das coisas’, Damásio discorre com brilhantismo sobre todos esses temas. Vale a pena ler, e reler em seguida.
O isolamento social e a pandemia têm-nos permitido ocupar na leitura as horas anteriormente ocupadas em outras tarefas do cotidiano. É o que tenho feito, ainda mais insistentemente do que antes. Pois acabo de me envolver na releitura de um livro que cuida da ‘História do Caminhar’, da norte-americana Rebecca Solnit. Sim, um livro de quase 500 páginas que é uma aventura de primeira ordem. (Martins Fontes, 2016). E ela que faz referência ao ‘caminhante solitário’ de Rousseau, para nosso particular deleite. De fato, jamais teria conseguido escrever tudo o que fiz, não fosse o hábito – talvez necessidade primeira – de caminhar para organizar o cérebro. Caminhar é o primeiro imperativo. Sem andar, com certo ritmo e por itinerários avulsos, o cérebro não progride. Foi assim, escrevem os paleontologistas, que descemos das árvores e avançamos nas savanas, em algum momento de aquecimento da terra nos confins da eternidade. E assim, desenvolvemos o cérebro, a mente, o raciocínio e nos tornamos em ótimos selvagens pré-humanos e, agora, dizem, pós-humanos. Mesmo que seja proibido sair por aí e caminhar a bel prazer, daqui a pouco a pandemia se acalma e passa. Sempre foi assim, será diferente agora?
Caminhar ao longo da cidade, no campo ou nas montanhas, voltará à ordem de sempre. Então vale caminhar pelas página de Rebecca Solnit e reler os ‘Devaneios de um caminhante solitário’, de Rousseau, escrito nas décadas finais do século 18, por volta de 1760.