A paz da alma
Cometo meus pecados e um deles – talvez, favorito – seja me afastar do mundo. Precisamos praticar os chamados ‘exercícios espirituais’ tão brilhantemente meditados na escrita de Pierre Hadot, o filósofo moderno que se especializou em Plotino. Sim, é preciso mergulhar em silêncios próprios e rejeitar o tumulto da vida nas polarizações do cotidiano.
Ainda persistimos – os intelectuais – na desproporção dos sentimentos, valorizando o pessimismo e desacreditando no sentimento da solidariedade. São valores cultivados por dois dos mais expressivos filósofos da modernidade: Schopenhauer e Nietzsche. O pessimismo de ambos se antepõem ao positivismo de Comte, décadas depois. Mesmo assim, não alcançamos o equilíbrio. Ao contrário, afundamos no mercantilismo e estamos voltando aos tempos de Hamurabi, do ‘olho por olho’, de 1.700 antes de Cristo.
Nas democracias modernas, estamos descambando para a oligarquia e para o totalitarismo, além das ‘cleptocracias’ (regime do roubo) em boa parte do planeta. O ressurgimento da direita nos dias atuais é o segundo ensaio de tempos ainda mais obscuros. O primeiro ensaio aconteceu na Europa entre os anos de 1922 – Mussolini, na Itália – Hitler na Alemanha – até 1945. O cenário, inclusive, será o mesmo, a Europa de Ucrânia e Otan.
Afastar-se do mundo, portanto, é um exercício de espiritualidade, educando nosso olhar, como o de Plotino, para as essências da vida. Só encontramos a paz do mundo, que existe e está a nosso alcance, quando fazemos a opção clara e disciplinada para o interior de nós mesmos. É preciso alimentar o espírito, pois, afinal, não só de pão vive o homem.
Os gregos – sempre eles – cultivavam muitos deuses. Entre eles, Apolo, o deus da beleza, da harmonia, do silêncio e da serenidade. O deus da paz, do ócio, do repouso, da emoção estética e do prazer da contemplação. O segundo mais importante deus grego era Dioniso, também chamado de Baco. O deus do prazer, do instinto, da ação, da emoção arrebatadora, do vinho e também da dança, da música e do drama épico. Os gregos dançavam inspirados na inquieta força masculina de Dioniso e na beleza e singularidades femininas de Apolo. A experiência emocional dos gregos do período clássico ainda transita entre nós. É parte do legado que plasmou a cultura do Ocidente.
Então, para usufruir a paz do mundo, é preciso, acima de tudo, retirar-se do mundo. Trata-se de exercício muito individual, sim, de nítido sentido religioso. Místico, por que não dizer. É no silêncio que somos capazes de sintonizar com as dimensões reais da vida. É no interior, como já dito, que somos capazes de encontrar o Reino de Deus. Reino do qual somos o único habitante, e no qual podemos, fugazmente apenas, entender o incognoscível. Compreender o incompreensível. Desfrutar da paz abissal da alma. A paz da alma não é a paz do mundo. Esta está dentro de nós e aquela dentro do mundo.
Música e leitura são caminhos para a edificação da alma. É o que Pierre Hadot, discípulo de Plotino, ensina com tanto cuidado e zelo em seus livros de filosofia, escritos há cerca de duas décadas apenas. Um bom livro de filosofia e música de fundo podem ser passaportes para a quietude e a contemplação, medicamentos essenciais da alma em tempos de tanto barulho e inquietação. (apolinarioternes.com.br/aternes@terra.com.br/ 16/05/23).