O ritual do pecado
Artigo, 14-02-14
–Apolinário Ternes
Carnaval é uma das festas mais antigas da humanidade. Dança, máscara e paganismo sempre se misturaram, desde sabe-se lá quando. Dos micênicos, dos etruscos, dos gregos? Daqueles tempos se origina o carnaval, a festa em que os homens se fantasiam de tudo e avançam imaginação adentro. Como sabemos no Brasil, é a festa pagã mais arretada do ano. Porreta e sem limite algum. O que vale é liberar, beijar na boca, cansar e dormir, sossegando os fantasmas que a festa liberta no imaginário de cada um.
Sim, o carnaval é da pré-história. Do paganismo e do politeísmo. Dos celtas, dos bárbaros, dos romanos, dos germânicos. Ancestral como, talvez, as cavernas. Devidamente adaptado, avançou cristianismo adentro e houve, inclusive, ‘procissão de carnaval’. Le Goff, em ‘As Raízes Medievais da Europa’, fala nisso. Por volta do século 13, de 1.200 em diante. Depois, nos séculos 14 a 16, os célebres carnavais de Veneza, de Florença, de Roma. Máscaras foram preciosas armas da corte em toda a Europa.
Sim, a igreja e o cristianismo souberam adaptar as manifestações culturais do paganismo para sua expansão nos primeiros mil anos, garantindo avanços contínuos. Especula-se, o purgatório, em 1.200, teria sido inventado para recuperar clientes, digamos, mais rebeldes. Depois caiu de uso, oito séculos mais tarde. Agora não se fala mais nele, por falta de utilidade e uso. Talvez volte, pois, afinal, o que é a história senão a repetição dos tempos?
Pois o carnaval tem a mesma invencibilidade. É metade mito, metade história, metade sacro, metade demoníaco. Eis, de novo, um personagem que saiu de moda, o demônio. Saiu de moda em parte, pois está presente a cada carnaval, propositalmente, ou melhor, humanamente. O carnaval, dizem os antigos, é destinado a espantar o demônio que dorme dentro de cada um o resto do ano. Assim, convencionou-se que o tempo do carnaval é o tempo da libertação, da expiação da carne, da livre entrega à permissividade. Antes da Quaresma e do recolhimento, em nosso tempo, dá-lhe nudez e sexo. Orgia a céu aberto, corpos esculpidos de licenciosidade, erotismo agressivo, fantasias delirantes e – por que não? – algum protesto político. Vale o deboche, a carnavalização, o despudorado protesto contra os que assaltam a ética e roubam o povo. Assim, em pleno carnaval a multidão se esbalda em riso e lágrima. Nada de cansaço ou preguiça, a ordem é festejar, beber, rebolar, cantar, enfim, todo aquele ritual pagão de entregar a alma e o corpo aos deuses da maldade, do proibido e do condenável. Pelo menos quatro dias, a cada 361 de outros sacrifícios e condenações. Sim, o carnaval tem futuro. De três milênios. E se o Brasil é o país do futuro, o carnaval pode contar com nossa plena entrega e delírio.