Posse na Academia Catarinense de Letras
(Discurso posse na Academia Catarinense de Letras, 10-05-2018)
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De fato, estou honrado. Não escondo a vaidade, nem o orgulho. Alcançar a Academia não decorre de intenção ou desejo, mas deve ser a colheita de anos dedicados às palavras. Letra por letra, desde sempre. Tanto na silenciosa e sempre difícil tarefa de organizá-las em texto, quanto na de deslizar os olhos sobre o texto produzido. Não apenas nossos, mas principalmente de outros. No tempo e no espaço, a palavra edifica. No princípio, diz o Evangelho, era o Verbo. E o Verbo se fez carne. Gente continua sendo a obra mais complexa que dança no Universo. É disso que somos feitos, de códigos, de símbolos, de letras que não explicam tudo, mas alimentam nossa fome de saber.
A Academia é um prêmio, de muitos que a vida me ofereceu ao longo de quase sete décadas. Um tempo de contrastes, mudanças e perspectivas ainda inimagináveis. Sou do tempo em que se levava pão com banha para a hora do recreio na escola. Sou do tempo em que se fazia jornalismo com chumbo quente e se montavam os títulos a dedo, reunindo letra por letra. Sou do tempo em que jornal tinha raras fotos e os textos eram extensos. Tempos antigos, perto dos celulares de hoje, do WhatsApp, dos smartphones, enfim, da vertigem da sociedade da informação. Esta de que padecemos todos, encharcados de notícias e cada vez menos informados sobre a essencialidade da vida.
Após quase três séculos estamos rompendo com os parâmetros da sociedade industrial, de consumo e capitalista. Dizem, os jornais estão morrendo, as revistas também. Cada vez menos gente tem interesse pelo modelo tradicional de comunicação e de transmissão de saber. Talvez não apenas da revolução industrial de 1760, mas da própria invenção de Gutenberg, na Alemanha de 1450.
Os tempos de hoje são diferentes dos de minha infância. Tão outros que é sempre mais difícil explicar para os que estão chegando como o tempo tinha outro valor e outro significado. E há tão pouco tempo. O tempo de uma vida apenas. Mudanças que acompanharam nossas vidas, todos nós reunidos nesta noite em que comemoramos a palavra, a cultura, e o conhecimento. Assim se desenvolve a história, fascinante sempre, pouco compreendida por muitos e, no entanto, carregada de novas e surpreendes mudanças.
Gostaria de lhes dizer que fui um privilegiado pois me ocupei o tempo todo de cuidar por mais de meio século, tão somente disso de que lhes falo hoje. Da palavra, do conhecimento, de jornalismo e de mudanças. Como aprendiz, sempre, sou um jornalista de meio século e por igual período lidei com a história em todos os seus planos e em todos os seus níveis. Debito o privilégio e a responsabilidade a forças superiores, pois, tanto me realizei na produção diária de reportagens e editoriais, ao longo de quase cinco décadas, de 1968 a 20015, quanto na elaboração de outros trinta livros sobre a história de Joinville e região. Passado e presente, portanto, estiveram no meu dia a dia a cada dia dos últimos 50 anos. Tem sido uma aventura fascinante e de aprendizado apaixonante.
Se não mais escrevo profissionalmente todos os dias, dedico aos livros o tempo que me resta. Ler é um dos mais sagrados deveres do homem. Cumpro com o meu dever. Espero, ainda por muitos anos, pois existem oceanos de textos à espera de leitura e releitura. Mais estas do que aquelas. É da palavra que continuo me alimentando. Não apenas leio os clássicos como Sêneca, Epicuro, Marco Aurélio e Cícero, mas repito a cada ano a leitura prudente e severa de Montaigne, o grande pensador de 1580 e, antes dele, do fundador da literatura moderna, Dom Quixote, de Cervantes.
Respeito o cânone do crítico americano Harold Bloom e, de quando em vez, descubro preciosidades como os ‘Manuscritos Notáveis’, do britânico Christopher de Male, sobre manuscritos da Idade Média. Também as lições essenciais de outro inglês de enorme importância, Christopher Dawson, um poderoso pensador da cultura ocidental desconhecido entre nós, falecido em 1970 e só agora publicado no Brasil. Dawson tem sido o consolo da maturidade e o alimento essencial para o futuro. Mesmo tendo escrito seus livros nas décadas de 1920 a 1940, produziu obra de magistral importância. A construção da cultura ocidental, a importância transcendental das religiões, a contribuição do cristianismo nas ascendência do mundo, os filósofos da antiguidade clássica, os Evangelhos e os Iluministas europeus do século 18, são os fundamentos e os pilares de todo o nosso sistema de vida. Deles é que nos servimos e a eles voltaremos, no ofício do destino coletivo dos homens, de ampliar a civilização e de aprofundar a espiritualidade.
Os tempos de hoje, certamente são mais fascinantes do que aqueles em que conheci o mundo. Tempos em que nos prostramos em dúvidas e angústias, preocupados com os que nos são próximos e terão a deslumbrante tarefa de viver o amanhã. Sim, há consenso quanto a instalação real das incertezas. Mas há, também, a certeza de que estamos, em velocidade sempre maior, caminhando para tempos melhores. É a ciência que avança, a qualidade de vida que melhora, o conforto que alcança a mais gente do que em qualquer outro tempo já vivido pela humanidade.
Os contrastes são múltiplos e mais agressivos, na medida em que encolhemos o mundo e somos partícipes – ingênuos, talvez – da era da globalização. Mas não é possível esconder os avanços, as melhorias, o glorioso momento da ciência e da tecnologia, que tornam o inimaginável de ontem, em quase uma certeza de amanhã. Ontem fomos à Lua. Agora estamos a caminho de Marte. Nem por isso reduzimos a fome ou domesticamos a política. Sim, tenho que passar por ela, a política. E não posso e não devo esquecer do Brasil. No último meio século, muitos foram os líderes políticos. Em Joinville, em Santa Catarina e no Brasil. Sim, e eles mudaram. Já foram messiânicos salvadores de quase tudo, hoje temos certeza de que o tempo todo todos estavam quase sempre operando em benefício próprio. Roubando o povo. Nossas instituições não funcionam, apesar de muito latim na Suprema Corte. Talvez estejamos perdendo os últimos anos que nos restam para nos tornamos viáveis como nação. Aqui, contudo, a política é sinônimo de banditismo e o Estado o predador maior, sem rumo, sem ética e sem limites. O padecimento é global. Depois do surgimento do fascismo e do nazismo, nas décadas de 1920 e 30 do século passado, nunca a democracia viveu dias tão incertos quanto os de hoje. Tanto em nossas cidades, quanto no Estado e em todo o nosso continental país. Nem aqui, nem no grande irmão do Norte, tanto quanto na velha e sofrida Europa. Não esquecendo da Ásia, onde persistem grandes impérios, fechados e totalitários.
Os nossos tempos são de conflitos e insegurança, sem dúvida semelhantes aos tempos passados, desde que o homem domesticou os animais e descobriu o cultivo de sementes. Bem por isso é preciso reinventar a arte do cotidiano. E daí volto ao encantamento da palavra, ao fascínio do conhecimento, à insuperável curiosidade de entender o passado para compreender o presente. Se não entendemos o ontem, não teremos compreensão do que está por vir. Virão sim, mudanças ainda maiores e, apesar do tempo nublado que nos habita, há razoável razão para acreditar no futuro.
A esperança, sempre será a melhor semente do futuro. Temos que acreditar, porque é dela que dependemos para construir vidas melhores.
Gostaria, como recomenda o protocolo da Casa, comentar rapidamente os antecessores da cadeira 8. Algumas palavras sobre o patrono da cadeira 8 e de seus ocupantes ao longo de quase 100 anos de existência da Academia Catarinense.
Dom Eduardo Duarte Silva, nascido nesta capital no ano de 1852, um ano após a fundação da colônia Dona Francisca no Norte, foi arcebispo emérito das dioceses de Goiás e de Uberaba. Ao acompanhar, ainda como monsenhor, o seu superior no Brasil a uma visita ao Papa Leão 13, foi sagrado bispo em Roma, e designado para Goiás. Morreu em 1924, sendo, então, uma das maiores personalidades da igreja católica no Brasil.
O fundador da Cadeira 8 foi Marcos Konder, de tradicional família de políticos e empresários de Santa Catarina. Primeiro ocupante da cadeira, foi prefeito de Itajaí, onde nasceu, e deputado de 1913 a 1937. Além de fundador e continuador de uma das principais dinastias políticas do Estado, Marcos Konder foi industrial e escritor. Nasceu em 1882 e faleceu em 1962, aos 80 anos de idade.
Marcos seria sucedido na cadeira por Victor Konder, seu irmão. Victor Konder, por sua vez, foi tio de outros dois eminentes políticos de SC: Jorge Konder Bornhausen e Antônio Carlos Konder Reis, ambos ex-governadores.
Victor ocupou vários cargos na administração de SC, como secretário da Fazenda, da Agricultura e de Obras públicas. Foi, ainda, Ministro dos Transportes do Brasil, no Governo do presidente Washington Luís, de 1926 a 1930. Morreu no Rio de Janeiro, no ano de 1941.
Foi sucedido por Carlos Gomes de Oliveira, nascido em 1894 e primeiro advogado de Joinville, diplomado em São Paulo. Filho de tradicional família luso-brasileira, o ex-senador Carlos Gomes foi um dos políticos de maior destaque de Santa Catarina no século passado. Ocupou a presidência do Senado Federal e presidiu a solenidade de posse ao presidente Juscelino Kubistchek, no dia 31 de janeiro de 1955. Foi deputado federal de 1934 a 1937 e senador de 1951 a 1959. Dedicou-se às letras e escreveu livros sobre a nacionalização do ensino e sobre história de SC e de Joinville. Seu mais importante livro – Integração – faz cuidadosa análise da formação da cidade de Joinville. Morreu em 1997, aos 102 anos de idade. Nas comemorações de seu centenário, em 1994, tive o privilégio de publicar um pequeno livro sobre a obra e a vida do Senador Carlos Gomes, de quem privei a amizade e de quem colhi muitos ensinamentos, especialmente de que não deveria ser tão crítico ao Brasil em meus artigos em A Notícia, ainda no século passado. Muito antes, portanto, dos traumáticos acontecimentos que caracterizam as primeiras décadas do presente século.
A cadeira número 8 foi ocupada, na sucessão do ex-senador de Joinville, pelo médico e escritor Polydoro Ernani de São Tiago, nascido em São Francisco do Sul, em 1909. Médico e escritor, exerceu a medicina com pioneirismo e dedicação e tem seu nome o hospital universitário de Florianópolis. Foi eleito para a Academia no ano de 1997 e faleceu em 1999.
O antropólogo Silvio Coelho dos Santos, professor da UFSC e reconhecida autoridade em assuntos indígenas em todo o país, é autor de obra de fôlego sobre a terra catarinense, especialmente sobre os povos indígenas de quem se fez uma das mais poderosas vozes na defesa de seus direitos inalienáveis.
Finalmente, meu antecessor na cadeira 8, foi jornalista e escritor. Gaúcho de Porto Alegre, Mário Pereira foi um dos mais consistentes e brilhantes jornalistas do Estado da última geração. Veio para criar o Diário Catarinense, em 1986 e foi editor também do tradicional O Estado. Professor e apaixonado por jornalismo será sempre admirado por várias dezenas de jornalistas que atuam no Sul do Brasil, para os quais repetia sempre: burrice e jornalismo são incompatíveis. Amou Florianópolis como poucos. Nunca casou e mantinha em sua casa um paraíso para cães e gatos. Criava seis cachorros e dois gatos, quando faleceu em 2014, aos 67 anos de idade. Escreveu 10 livros, quase todos sobre jornalismo, natureza e Florianópolis.
Assim, não há como não ter orgulho em chegar a tão nobre lugar. Ilustres intelectuais, empresários, políticos e homens de estirpe, que muito contribuíram para a construção do patrimônio cultural de nosso Estado, estiveram neste assento que, a partir de agora, por decisão generosa dos meus caros colegas e acadêmicos, passo a ocupar. É, como disse, uma honra e distinção que enobrece os anos finais de toda uma vida ocupada com os temas que tratamos nesta magnífica casa de José Boiteux.
Quero agradecer as atenções do amigo Salomão Ribas Jr. , muito digno presidente desta Casa de Letras, assim como ao colega Moacir Pereira, cuja vida foi igualmente pródiga em jornalismo e história, com obra das mais respeitadas em Santa Catarina. Muitos anos de proveitosa amizade nasceu entre nós, profissionais por décadas do quase centenário jornal A Notícia. Quero agradecer suas palavras e garantir que a escolha de seu nome foi imediata à comunicação que recebi de minha eleição. E, de novo, dizer que é uma especial deferência tê-lo como orador oficial à minha chegada à Academia.
Peço licença aos ilustres colegas acadêmicos, ao presidente da Casa e aos amigos, convidados e familiares aqui presentes, para compartilhar este momento solene com a minha distinta, querida e nobre companheira Rita de Cássia. Amanhã, dia 11, comemoraremos 45 anos de união, ainda que apenas 44 de casamento. Companheira e solidária sempre. Obrigado Rita, preciso dividir a emoção de hoje com você. E com os filhos Thiago e Bruna. Como tem sido desde sempre.
Obrigado a todos!